Cotas Raciais: o Supremo Tribunal Federal a frente de seu tempo
Artigo juridico do Dr. Hudson Sander que aborda a
maturidade do Supremo Tribunal Federal em declarar as cotas raciais como
sendo constitucionais, assim aproximando o principio da igualdade da
realidade social brasileira
O regime de escravidão não é
fato novo na história, se for buscar as raízes das sociedades mais
primitivas, poderá se observar que sempre existiu uma classe dominante
que para dar vazão aos seus interesses políticos, sociais ou culturais,
fez uso de meios coercitivos para levar um determinado grupo menos
privilegiado a realizar os seus anseios de forma a não existir
questionamentos, quanto à legalidade da ação inflingida.
Com o amadurecimento da vida do ser humano em sociedade e, por
conseguinte com seu estudo, preliminarmente chega-se a conclusão que a
convivência do ser humano para com o seu semelhante, via de regra,
sempre foi pautada por ações de redução de uma determinada classe social
a uma posição de inferioridade com a submissão desta a realização dos
anseios mais escusos da classe social dominante.
No Egito, na Grécia, em Roma, na antiguidade, observou-se bastante o
tipo de submissão forçosa da classe dominada aos anseios da classe
dominante, que enxergava em tais atos uma maneira de atingir
vertiginosas somatórias de lucros financeiros sem despender altos gastos
com a geração de riquezas.
Com o término da conhecida Idade Média, a sociedade encontrava-se em
um nível de relativo amadurecimento mental. O rompimento com velhos
paradigmas fez com que um novo mundo fosse descoberto. Infelizmente com a
descoberta de um novo mundo sedimentou-se velhas e repugnantes práticas
herdadas das sociedades antigas.
Na vetusta pretensão humana de se mostrar superior ao seu vizinho, os
países pioneiros do desbravamento do continente americano temendo
perder a potencialidade de auferir cada vez maiores quantias de riquezas
precisavam de um método infalível e eficaz de garantir as suas posses
territoriais e se destacarem na vizinhança do “velho mundo”, eis que o
método mais difundido da época de atingir a todas estas metas
supramencionadas, era escravizar um povo e assim atingir riquezas a
custo zero.
No Brasil, a primeira tentativa de escravizar os povos nativos não
atingiu os resultados esperados, pois pela cultura dos indígenas da
terra, ceifar a própria vida era a melhor alternativa de resistência.
Assim sendo, nos meados do século XVI e inicio do século XVII, os
colonizadores portugueses resolvem buscar os povos do continente
africano para submetê-los a um dos maiores genocídios e atentados contra
a dignidade da pessoa humana já registrado em toda a história mundial,
que se arrastou do século XVI ao final do século XIX.
Na história brasileira, os afro-descendentes durante aproximadamente
03 (três) séculos ou pouco mais, foram vistos, não como pessoas, dignas
de direitos e deveres na sociedade, mas sim como semoventes, ou objetos
móveis de auto locomoção pertencentes à propriedade de outrem.
Com os acontecimentos históricos da Revolução Americana e da
Revolução Francesa datada do final do século XVIII, a mentalidade global
amadureceu, e os princípios de igualdade, liberdade e fraternidade
começaram a nortear as organizações sociais e estatais dos Estados
soberanos da época, e neste contexto histórico, também começou a
amadurecer a formação de organismos internacionais para dar maior
fluidez às relações jurídicas entre Estados soberanos, e todos,
adentrando em uma nova época mental, repudiavam quaisquer atos estatais
que fossem pautados na velha mentalidade de dominação.
Com o transcorrer do século XIX, muitos Estados soberanos foram
ajustando o seu estilo de vida em sociedade aos novos anseios
democráticos internacionais. Não o Brasil, que ainda enxergava larga
vantagem em manter o regime escravocrata.
Uma realidade que é do total desconhecimento das massas é que a cada
ameaça de sanção pela comunidade internacional o Brasil articulava
dentro do seu sistema uma lei para amortizar as pressões internacionais.
Vale a pena pesquisar as conhecidas lei Eusébio de Queiróz, lei dos sexagenários, lei do ventre livre que
tinham a real finalidade de não desagradar a comunidade internacional
ao mesmo tempo que ainda mantinha a exploração da mão de obra escrava.
Não mais conseguindo suportar a pressão dos organismos internacionais, agora nas portas do século XX, o Brasil resolve, em uma “jogada de mestre”, embarcar na febre dos direitos sociais trabalhistas que nascia na Europa do final do século XIX, e se colocar como “bom garoto”
aos olhos da comunidade internacional, se preparando para usar e abusar
da mão de obra da massa operária européia que estava chegando em solo
brasileiro, ao mesmo tempo que iria se livrar de um fardo para a
incolumidade das relações diplomáticas internacionais, no dia 13 de maio
de 1988 aprova a conhecida “Lei Áurea” que “aboliu” o regime de escravidão do Brasil.
No entanto, os problemas sociais, morais e de toda ordem da etnia que
por mais de 03 (três) séculos contribuiu para o crescimento do Brasil
enquanto nação estava apenas começando, de vez que no instante em que
cessou as pressões internacionais, não tinha mais o Brasil interesse em
beneficiar a classe afro-descendente de qualquer forma, e o descaso das
políticas públicas culminou em uma triste herança cultural e social que
foi passada de pai para filho, tanto dos remanescentes das classes
dominantes, quanto dos remanescentes das classes afro-descendentes.
Antes do advento do Código Penal de 1940, o diploma penal repressivo
antecessor ao supramencionado tinha dispositivos atentatórios a diversas
práticas culturais e sociais dos afro-descendentes, tal como a prática
da capoeira, que é a arte marcial desenvolvida pelos afro-descendentes
brasileiros.
Nas primeiras décadas do século XX, era expressamente proibido o
ingresso de afro-descendentes em determinadas carreiras, principalmente
as de caráter desportivo.
A marginalização conceitual do afro-descendente na sociedade
brasileira não foi banida com dispositivos legais subseqüentes a
equiparação do afro-descendente aos demais euro-descendentes.
Levando em consideração que o Brasil até uma certa altura do século
XX era “rural”, sabe-se que a mentalidade discriminatória radical veio
acompanhando a sociedade brasileira até meados da década de 60, quando a
industria do entretenimento começou a introduzir no mercado musical
talentos afro-descendentes.
De forma empírica, pode-se aduzir que a amortização da discriminação
racial voltada para os afro-descendentes deu-se com ênfase na década de
80, quando o Brasil, dando inicio ao seu processo de americanização não
teve como não ceder a avalanche de idéias norte-americanas de que os
afro-descendentes podem ser detentores de riqueza, sucesso, prestígio e
status.
No entanto com a proximidade do século XXI, um fato social mostrou-se
muito relevante, ou seja, já não mais era fino e elegante discriminar
abertamente os afro-descendentes. E um estratagema usado pelos herdeiros
da mentalidade racista das décadas anteriores para frear o acesso dos
afro-descendentes às camadas mais elevadas da sociedade brasileira foi o
de utilizar argumentos de vertente sociológica para auto-sugestionar
aos afro-descendentes de que atingir determinados patamares dentro da
sociedade brasileira é algo fora dos parâmetros da realidade.
A discriminação racial voltada aos afro-descendentes sofisticou-se
significativamente nas duas últimas décadas do século XX, pois em
entrevistas de emprego, por mais que um afro-descendente tenha boa
qualificação, aquele que tem o poder de escolha, quando é herdeiro de
uma mentalidade racista, simplesmente opta por outro que não seja
afro-descendente, dificultando a ação do Estado de coibir tal prática
discriminatória.
Quanto ao ingresso em instituições de ensino superiores, os herdeiros
de uma mentalidade racista sempre visam em comum acordo com outros que
compartilham dos mesmos ideais nefastos, repugnantes de natureza
racista, usar o sistema de ensino contra os afro-descendentes, de vez
que visam de forma tênue e sutil construir uma reprovação do discente
enquanto que ao mesmo tempo levantam um discurso de que o fato do
afro-descendente não conseguir “acompanhar o ritmo universitário é devido a sua formação educacional oriunda de escolas públicas”.
O sistema normativo brasileiro, baseado nos parâmetros da civil Law
não mais estava conseguindo atingir a sua finalidade precípua que é
regulamentar a vida em sociedade, afastando do seu cidadão qualquer
injusto jurídico, e os frutos da herança racista, construído ao longo de
04 (quatro) séculos de história estava atingindo proporções que tinham o
condão de desconfigurar o estado democrático de direito tal qual como
conhecemos.
É fato incontroverso de que as estruturas do Poder Legislativo e
Executivo brasileiro sofrem de profunda e aviltante eiva que
temporariamente impede tais poderes de manifestar-se de forma a atingir a
sua finalidade dentro dos parâmetros republicanos.
O Poder Judiciário, sabiamente, fazendo uso de suas atribuições e construindo em nossa realidade fática os parâmetros da common Law, a
nível de sociedade brasileira se mostra, no que concerne ao Supremo
Tribunal Federal, significativamente a frente de seu tempo.
No mês de abril do ano de 2012, o Supremo Tribunal Federal, a mais
alta corte de justiça do Brasil em um julgamento, demonstra uma
maturidade jamais experimentada em nenhum dos poderes da república ao
mostrar que a Justiça da alta corte é cega para as tentativas de suborno
ou corrupção, bem como para os anseios nefastos de uma casta da
sociedade que é detentora da herança racista de pais e avós, ao
contrariar certos interesses e concluir que diante da realidade dos
fatos, o princípio da igualdade, erigido como cláusula pétrea na
Constituição Federal (art. 5º da CF/88) só pode ser usufruído pelos
afro-descendentes com a reserva de cotas em instituições de ensino,
devido à sofisticada forma que a prática da discriminação racial
alcançou no seio da sociedade brasileira.
O Supremo Tribunal Federal, através de seu brilhante corpo de
Ministros, fez valer a máxima de Aristóteles onde que a máxima da
consecução da igualdade se baseia em analisar os desiguais na medida de
sua desigualdade visando colocá-los em um patamar de igualdade para que
ambos gozem de iguais e perfeitas condições.
Tendo em vistas o fator histórico da sociedade brasileira, desde os
seus primórdios, pode-se concluir que a forma transparente com que o
Poder Judiciário, em especial, o Supremo Tribunal Federal, agiu diante
de um assunto que há tempos é evitado em nossa sociedade, demonstra que a
suprema corte brasileira se encontra em um profundo nível de maturidade
jurídica e social que a coloca a frente de seu tempo, se comparada a
autonomia dos Ministros com a autonomia dos demais ligados aos outros
poderes da república.
Pois, enquanto os demais dos outros poderes da República utilizam sua
autonomia funcional para alcançar interesses escusos e beneficiar
determinadas classes em troca de favores, os ministros do Supremo
Tribunal Federal fizeram uso de sua autonomia funcional para contribuir
com a ordem e o progresso da sociedade brasileira, mostrando que uma
sociedade justa só pode sair do plano das idéias e vir para o plano das
ações quando todos os segmentos que a compõe estão em iguais condições
de não só buscar o crescimento regional como também contribuir de tal
modo que o seu país venha a sentir orgulho do índividuo.
Em tempos conturbados, cada vez mais o Supremo Tribunal Federal vem
ganhando a confiança e credibilidade dos cidadãos brasileiros e quiçá
dos cidadãos de outros estados soberanos, provando que idoneidade moral,
comprometimento com as atribuições constitucionais pode andar junto com
notório saber jurídico e reputação ilibada e envolvimento profissional
acima de qualquer interesse escuso.
Certamente as futuras gerações comentarão que nos dias atuais foi
dada não tão somente uma consuetudinária decisão magistral de última
instância, mas sim um grande passo rumo a vinculação moral de uma
sociedade às leis que as regem.
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